“Cansei de ouvir que futebol não era pra mulher e que eu deveria ir jogar queimado com as meninas. Quando a gente errava algum passe, eles falavam ‘ah, vai brincar de boneca, não sabe jogar bola’, assim.. queriam diminuir a gente” – Sarah, participante do projeto Pretas em Campo |
Redação: Ivana Di Mauro | Revisão: Thaís Olivetti
É certo que muitos avanços aconteceram nos últimos anos em relação à equidade de gênero no esporte. Os jogos do Brasil na Copa do Mundo de Futebol Feminino 2023 estão sendo televisionados, as atletas da seleção finalmente receberam uniforme próprio, e o valor das premiações aumentaram um pouco. Os avanços são significativos, sim. Mas, a verdade é que a desigualdade de gênero no acesso e permanência no esporte é histórica e estrutural. Por isso, é preciso mais.
Sabemos que 34,8% das meninas brasileiras abandonam a prática esportiva na adolescência e que 90% das meninas de 11 a 19 anos são sedentárias no Brasil (OMS). Isso revela um cenário preocupante, que mais tem a ver com gênero do que aptidão para o esporte. As meninas querem jogar, as meninas sabem jogar, mas quais são as condições que nós, como sociedade, criamos para garantir o direito das meninas ao esporte?
A pesquisa “Por ser menina no Brasil” (PLAN, 2022) mostrou que enquanto 67,2% das meninas desempenham tarefas domésticas, apenas 31,9% dos meninos fazem o mesmo. As garotas, da infância à adolescência, vão se tornando as responsáveis pelo trabalho doméstico e cuidado de seus irmãos e irmãs mais novos/as enquanto suas mães trabalham. Desde cedo, elas iniciam a “dupla ou tripla jornada” entre estudos, trabalho informal e tarefas domésticas. Essa sobrecarga, frequentemente, se torna um obstáculo para que elas acessem e permaneçam em programas esportivos, o que prejudica o seu direito ao esporte e, consequentemente, o desenvolvimento de diversas habilidades importantes para as suas vidas.
Mas para além do trabalho doméstico, existem outros obstáculos estruturais e culturais para a participação das meninas no esporte: o assédio; a falta de instalações esportivas, de recursos econômicos, de incentivos e de oportunidades voltadas para as meninas; e, claro, os estereótipos de gênero reproduzidos por familiares, colegas e até professores/as, e que muitas vezes acabam por afastar as meninas da prática esportiva. Quem nunca ouviu frases como: “lugar de mulher é na cozinha!”, “menina não sabe jogar!” ou “futebol não é coisa de menina!” ?
Assim, é importante termos em mente que a forma como educamos, tratamos e socializamos as crianças e adolescentes pode tanto reproduzir como transformar as desigualdades sociais, inclusive aquelas relacionadas ao esporte. Para muitas meninas, a educação física escolar é o espaço onde elas têm o primeiro contato com o esporte. Por isso, é indispensável que esse espaço seja seguro, inclusivo, saudável e acolhedor para que possamos potencializar as vivências positivas das crianças/adolescentes com os esportes.
Mas apesar do trabalho notório de diversas profissionais da educação física, é importante ressaltar que a educação física escolar tem historicamente contribuído para a construção de masculinidades e feminilidades normativas, o que também influencia o tipo de prática esportiva que as meninas e os meninos poderão ou não participar. Ainda é muito comum, por exemplo, que nas aulas os meninos joguem futebol e as meninas queimado, volêi ou outras atividades consideradas mais apropriadas para as meninas. Em outras palavras, ainda hoje os conteúdos e as atividades das aulas de educação física são determinados pelo gênero, e isso influencia o tipo de habilidade que as crianças e adolescentes irão (ou não) desenvolver no esporte e, consequentemente, influencia também as oportunidades que terão em diferentes modalidades. Isso não apenas coloca as meninas em desvantagem, no esporte e na vida, mas também diversas outras crianças e adolescentes que não se encaixam em tais padrões normativos de masculinidade e feminilidade, e não se sentem confortáveis realizando certas atividades voltadas para os meninos ou para as meninas nas aulas de educação física. Outra coisa que também é muito comum encontrarmos nas aulas de educação física ainda hoje é a quadra sendo dominada pelos meninos.
“As meninas que quisessem jogar na quadra teriam que esperar os meninos deixarem ou a gente ficava lá mexendo no telefone, conversando com as amigas, e esperando as duas horas de educação física passar” – Lissandra, participante do projeto Uma Vitória Leva à Outra |
Foi pensando nestas desigualdades de gênero (sociais, culturais e históricas) que atravessam o direito das meninas e das mulheres ao esporte – e que são reproduzidas por diversos atores da sociedade – que a Empodera, em parceria com o Impulsiona, desenvolveu um Curso Online: Meninas em Quadra! sobre gênero e esporte voltado para profissionais da educação física. O objetivo do curso é contribuir com o trabalho de tais profissionais visando o aumento da participação das meninas nas aulas, bem como as vivências positivas de crianças e adolescentes com o esporte. Para isso, o curso irá: i) apresentar dados e fatos marcantes que contribuíram e ainda contribuem para a desigualdade de gênero no esporte; ii) promover uma reflexão sobre as práticas pedagógicas que transformam ou reproduzem as desigualdades de gênero na educação física escolar; iii) trabalhar o que são e como criar espaços seguros nas aulas de educação física; iv) compartilhar 10 planos de aula que trabalham a equidade de gênero na educação física através de práticas esportivas co-educativas. Para se inscrever gratuitamente, acesse: https://impulsiona.org.br/equidade-genero-educacao-fisica/
Além disso, em parceria com o Impulsiona, a Empodera também lançou o material pedagógico A Copa é Delas! , um jogo de tabuleiro que envolve perguntas, respostas e desafios com bola, e que foi pensado para docentes que desejam trabalhar o tema da copa durante as aulas e aumentar a visibilidade do futebol feminino, ampliando o olhar das crianças e adolescentes sobre as questões de gênero no esporte. O jogo é voltado para adolescentes do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, e pode ser usado como recurso interdisciplinar, conciliando disciplinas como Educação Física, História, Matemática, Sociologia e Geografia. Para baixar o jogo gratuitamente acesse: https://impulsiona.org.br/jogo-tabuleiro-copa-feminina/
Vamos em conjunto fortalecer a luta das meninas e mulheres pela equidade de gênero no esporte?
1 Ministério do Esporte. Diagnóstico Nacional do Esporte. 2015. Disponível em: Diagnóstico Nacional do Esporte
2 Guthold, R., Stevens, G. A., Riley, L. M., & Bull, F. C. (2020). Global Trends in Insufficient Physical Activity among Adolescents: A Pooled Analysis of 298 Population-Based Surveys with 1.6 Million Participants. The Lancet Child & Adolescent Health, 4, 23-35.
3 PLAN, International. “Por ser menina no Brasil: Crescendo entre Direitos e Violências”. 2022. Disponível em: https://plan.org.br/wp-content/uploads/2021/11/por-ser-menina-resumo-executivo-final.pdf